Ponta Delgada, 3 de Maio de 2018

Começo por agradecer o amável convite feito pela Senhora Presidente do Clube Rotário de Ponta Delgada para estar presente neste encontro quer se reveste da maior honra para mim. O tema que me foi proposto é tão abrangente quanto difícil de limitar. Contudo manifesta algo de importante porque nos faz saltar do momento presente e projectarmos o olhar para o futuro de modo que nos sintamos a percorrer caminhos que nos conduzem a uma sociedade mais humana.

Desde logo peço a vossa benevolência para o facto de limitar a minha reflexão a um conjunto de propostas que julgo serem dos maiores desafios. Eis os aspectos que abordarei: estamos num novo período da história; estamos numa época que reclama sabedoria; urge interpretar os sinais dos tempos; duas consequências: um novo humanismo e uma nova ordem social; a promoção de uma nova cultura: a prioridade aos pobres; a defesa da vida; a valorização da família; a promoção da justiça e da paz; a edificação da sociedade na autêntica liberdade religiosa; cuidar de uma ecologia integral.

 

  1. Estamos num novo período da história

Há cerca de cinquenta anos o Concilio Vaticano II referia-se ao período histórico que estamos a viver como um verdadeiramente novo na história da humanidade. Diz ele que «a humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra». E, acrescenta sublinhando que «provocadas pela inteligência e actividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e colectivos, sobre os seus modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas».  Finalmente, refere que «de tal modo que podemos já falar duma verdadeira transformação social e cultural, que se reflecte também na vida religiosa» (GS, 4).

Esta constatação a que o Concilio compara a uma crise de crescimento deve ser tomada a sério. Há um mundo novo que está a abrir-se perante a humanidade.

Este facto leva S. João Paulo II na Enciclica «Novo Millenio Ineunte» a definir como programa para este novo milénio a descoberta da figura de Jesus de Nazaré. Diz-se nesse documento que «como aqueles peregrinos de há dois mil anos os homens do nosso tempo, talvez sem se darem conta, pedem aos crentes de hoje não só que lhes “falem” de Cristo, mas também que de certa forma lh’O façam “ver”». E acrescenta-se a interrogação que realça o seguinte: «e não é porventura a missão da Igreja reflectir a luz de Cristo em cada época da história, e por conseguinte fazer resplandecer o seu rosto também diante das gerações do novo milénio? » (nº23).

E, nesse mesmo documento sublinha-se que «Jesus é o “homem novo” (cf. Ef 4,24; Col 3,10), que convida a humanidade redimida a participar da sua vida divina» (nº 23).

Para a Igreja, tomar consciência da nova fase da história da humanidade é igualmente uma exigência de oferecer a Jesus de Nazaré como o «homem novo» e Aquele que oferece a resposta ao enigma da vida humana. Neste sentido refere o Concilio: «o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente» (GS, 22).

 

  1. Estamos numa época que reclama Sabedoria

O progresso gerado pela inteligência humana oferece à humanidade possibilidades e meios nunca alcançados. Esta constatação gera um certo fascínio que nem sempre ajuda a reconhecer a autêntica felicidade humana.

Volto ao Concilio para recolher a afirmação que diz: «mais do que os séculos passados, o nosso tempo precisa de uma tal sabedoria, para que se humanizem as novas descobertas dos homens». Mais ainda, «está ameaçado, com efeito, o destino do mundo, se não surgirem homens cheios de sabedoria» (GS, 15).

Deste modo reconhecemos que «a natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na sabedoria, que suavemente atrai o espírito do homem à busca e amor da verdade e do bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até às invisíveis» (Ib. 15).

A sabedoria só será possível se o homem souber articular todas as suas dimensões integrando-as no amor como núcleo central do conhecimento.

 

  1. Urge interpretar os Sinais dos Tempos

Segundo o pensamento Conciliar o Espirito de Deus que actua na Igreja está presente também no meio do mundo de modo que, pela Sua acção, no meio de contradições e ambiguidades, vai-se edificando o Reino de Deus que se traduz na Paz, na justiça, no bem, no bom, na verdade, no amor e na beleza.

À Igreja, sacramento Universal de Salvação, isto é, sinal deste Reino, compete-lhe interpretar os sinais que Deus oferece no meio do mundo para reconhecer a edificação deste Reino Novo. Eis as palavras do Concilio: «para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas». Mais ainda, «é, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático» (GS, 4).

Na proposta de diálogo entre a Igreja e o mundo, a interpretação dos sinais dos tempos é certamente das realidades mais prementes e necessárias.

 

  1. Duas consequências: um novo humanismo e uma nova ordem social

A modernidade pretendeu exaltar o homem e torna-lo centro de toda a realidade que acabou por isolá-lo e coarctá-lo de várias das suas dimensões. Reduzindo-o à sua dimensão material, temporal e racional indiciou a nova época, a post-modernidade que desvalorizou o ser humano de tal modo que nem a razão tem poder para alcançar a verdade. Esta dá lugar ao relativismo, ao fragmentário, ao efémero, ao presente imediato (…).

Perdem-se as certezas dos grandes relatos que projectavam um sentido global da existência pessoal e social. Estamos perante o que o Papa Francisco chama a cultura do descartável. Até o próprio homem é descartável.

Impõe-se assim a edificação de um novo humanismo que reconstrua o homem na globalidade do seu ser e na valorização de todas as suas dimensões.

A partir da pergunta «quem é o homem, o Concilio refere que «Ele próprio já formulou, e continua a formular, acerca de si mesmo, inúmeras opiniões, diferentes entre si e até contraditórias». Na verdade «segundo estas, muitas vezes se exalta até se constituir norma absoluta, outras se abate até ao desespero». E acrescenta: «daí as suas dúvidas e angústias». Deste modo, «a Igreja sente profundamente estas dificuldades e, instruída pela revelação de Deus, pode dar-lhes uma resposta que defina a verdadeira condição do homem, explique as suas fraquezas, ao mesmo tempo que permita conhecer com exactidão a sua dignidade e vocação» (GS, 12).

Após referir a consciência como o santuário onde Deus fala ao homem e o faz reconhecer o bem e o mal, o Concilio exalta a liberdade como factor da dignidade humana. Assim, «é só na liberdade que o homem se pode converter ao bem». De facto, «os homens de hoje apreciam grandemente e procuram com ardor esta liberdade; e com toda a razão». Mais ainda, «muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade». Sem dúvida, «a liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem» (GS, 17).

Perante as doutrinas que negaram a transcendência do homem, o Concilio resume a dignidade humana dizendo «a razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com Deus». Na realidade, «é desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é só porque, criado por Deus por amor, é por Ele por amor constantemente conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu Criador» (GS, 19).

Quando à nova ordem social refiro apenas duas frases, uma do Papa S. João Paulo II e outra do Papa Francisco.

  1. João Paulo II, na Carta Apostólica citada atrás, refere num dado passo: «o nosso mundo começa o novo milénio, carregado com as contradições dum crescimento económico, cultural e tecnológico que oferece a poucos afortunados grandes possibilidades e deixa milhões e milhões de pessoas não só à margem do progresso, mas a braços com condições de vida muito inferiores ao mínimo que é devido à dignidade humana» (NMI, 50). Termina sublinhando que «devemos procurar que os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em sua casa”»(Ib. 50).

Por sua vez o Papa Francisco, convidando a escutar o clamor dos pobres, afirma que «não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso “sustento” para todos, mas “prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos”». Na verdade, «isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida». E, ainda, «o salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum» (EG, 192).

É do Papa Francisco a célebre e interpelante frase que diz: «Esta economia mata» (EG, 53). Com ele devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social».

  1. A promoção de uma nova cultura

No contexto de uma nova cultura a edificar sublinharia alguns âmbitos a privilegiar: a prioridade aos pobres; a defesa da vida; a valorização da família; a promoção da justiça e da paz; a edificação da sociedade na autêntica liberdade religiosa.

O Papa Francisco lança alguns desafios à cultura actual quando diz que «na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede o lugar à aparência. Em muitos países, a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas eticamente debilitadas» (EG, 62).

E, acrescenta «o processo de secularização tende a reduzir a fé e a Igreja ao âmbito privado e íntimo. Além disso, com a negação de toda a transcendência, produziu-se uma crescente deformação ética, um enfraquecimento do sentido do pecado pessoal e social e um aumento progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma desorientação generalizada, especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da adolescência e juventude» (EG, 64).

E, ainda, «evangelizamos também procurando enfrentar os diferentes desafios que se nos podem apresentar. Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros ataques à liberdade religiosa ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que, nalguns países, atingiram níveis alarmantes de ódio e violência. Em muitos lugares, trata-se mais de uma generalizada indiferença relativista, relacionada com a desilusão e a crise das ideologias que se verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário» (EG, 61).

No contexto de uma nova cultura tomará relevo o respeito pela vida humana desde a concepção até à morte natural e a família, relação entre homem e mulher, inserindo tudo o que tem a ver com a fecundidade em âmbito de casal fruto de amor e relação conjugais.

A justiça e a paz serão, sem dúvida outros elementos fundamentais para uma nova cultura como fica já acentuado acima.

Concluo com a referência ao desafio de uma ecologia integral.

O Papa S. João Paulo II tinha já referido que neste próximo milénio a ecologia seria uma das grandes preocupações para toda a humanidade e sobretudo para a comunidade eclesial. Tomemos as suas palavras que nos lançam a interrogação: «como ficar indiferentes diante das perspectivas dum desequilíbrio ecológico, que torna inabitáveis e hostis ao homem vastas áreas do planeta?» (NMI, 51).

Já o Papa Francisco premiou-nos com um belíssimo e profundo texto que nos ajuda a todos a cuidar da ecologia integral e bem fundamentada. Cito apenas um pequeno parágrafo que diz: «o urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar» (LS, 13). E, acrescenta, «lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós» (LS, 14).

Ultimamente deu-se um despertar para as questões ecológicas. Contudo falta uma visão global e sobretudo uma verdadeira fundamentação do que respeita à criação para que ela seja tida como património oferecido à humanidade para servir a todos e por isso ser cuidada por todos.

 

Conclusão

Concluo com a consciência de que muito fica por dizer. Falar sobre os desafios que se colocam à Igreja no século XXI são vastos e quase inumeráveis. Reduzi a alguns que julgo que são mais englobantes e nos quais se situam muitas interpelações.

De propósito não sublinhei assuntos demasiado internos à Igreja porque reconheço que a missão da Igreja é olhar para o mundo, em atitude de diálogo, e reconhecer como seus os desafios que se colocam à sociedade. Não rejeito a necessidade de a Igreja se repensar continuamente a si mesma. Porém esta exigência é-lhe apresentada em ordem à sua missão evangelizadora.

Muito obrigado

 

+João Lavrador, Bispo de Angra e Ilhas dos Açores