Matriz. Ponta Dlegada.

Caríssimos irmãos e irmãs

Ao celebrar, nesta cidade de Ponta Delgada, a festa do Espírito Santo, visita-nos uma palavra surpreendente. Vamos acolher esta proposta renovadora do Espírito para que a alegria da festa seja mais plena, mais profunda, crie mais proximidade.

Hoje quero convosco apenas saborear a proximidade, pois essa é uma realidade desta festa. A proximidade de Deus, que cria comunhão com os outros como próximos, é obra do Espírito Santo.

 

  1. A Palavra está perto e requer acolhimento

Há uma pergunta que me fazem muitos contemporâneos: “Como encontrar Deus? Como fazer uma experiência que nos transforme?” Ouvimos as últimas palavras de um discurso de Moisés: “esta palavra está perto de ti, está na tua boca e no teu coração, para que a possas por em prática. Não está cima das tuas forças, nem fora do teu alcance. Não está no céu, não está para além dos mares”. O sentido da nossa vida não está em normas exteriores, mas num agir que nos aproxima de Deus. Importa uma conversão interior para que a Palavra passe das tábuas de pedra para o coração de carne, passe de letra da bíblia para as atitudes vitais. Quem proporciona esta aproximação? O Espírito Santo. A nova vida em Cristo é sumamente concreta. Experiencia-se no simplesmente humano, no quotidiano. A comunhão com a vida nova em Cristo gera abandono existencial ao Pai, permite dar sentido à vida concreta. É o Espírito Santo que permite esta ação discreta e profunda.

Conhecer, amar e incarnar na nossa vida esta palavra de amor não é estranho, longínquo e inacessível. Os preceitos do nosso Deus que o Espírito Santo grava no nosso coração dão alegria, não oprimem, não privam da liberdade, indicam um projeto feliz. Agir seguindo a Palavra, não implica renunciar à nossa autonomia, mas agir segundo a verdade e a sabedoria, para sermos autenticamente livres. Tantos condicionamentos gerados pelas coisas, pelas pessoas, por nós próprios podem tornar-nos escravos e distanciar-nos, privar-nos da verdadeira alegria.

É o Espírito Santo que hoje continua nesta comunidade a dar-nos abertura para entender a Palavra de Deus. É ele que transforma a oferta da nossa vida e trabalho para que tudo se conjugue a favor do bem comum.

Graças à força invencível do Espírito podemos mover montanhas que parecem intransponíveis. Se dermos espaço em nós à presença do Espírito Santo ele retira-nos do isolamento, da concha indiferente e abre-nos à comunhão, ele é luz para discernir questiúnculas a abandonar e para traçar caminho de sensibilidade ao essencial, de atenção a quem vive ao meu lado. A respiração de Deus não se dá com meros consumidores de religião, sem ousadia que transpire em testemunho missionário.

Se dermos espaço ao Espírito Santo deixaremos uma vida banal, pautada pela mediocridade superficial para inaugurar dinamismos de sabedoria e fortaleza resistente. Ele agita a vida dos pastores e das comunidades e abre-as a um futuro novo. A inspiração de Deus, que conduz a história do princípio ao fim, não se dá com a mediocridade ressequida, com a estagnação pantanosa.

  1. Outra proximidade se evidencia na Palavra hoje escutada.

A pergunta do doutor da lei, um perito jurista, era própria do debate do seu tempo: Quem é o próximo a quem amar? Qual mandamento é mais importante, de qual depende a vida eterna? Era este um problema que preocupava verdadeiramente. Alguns fariseus e essénios consideravam como próximos apenas aqueles que faziam parte dos seus grupos e excluíam os demais. Pensavam que o mandamento do amor não incluísse os pagãos, os idólatras, mas somente os verdadeiros crentes. Desaconselhavam a relação com eles e, sobretudo, dar-lhes ajuda. Havia um profundo desacordo e eram muito vivas as discussões entre as diversas correntes: sectários, ortodoxos e liberais.

Jesus, chamado mestre, com paciência e com sabedoria, leva o doutor da lei a ir ao centro da mensagem. O doutor da lei conhecia a resposta. A vida eterna manifesta-se no amor a Deus e ao próximo. Jesus afirma: “tens razão, falta-te fazer segundo a resposta que deste”. Amar significa viver e viver, realmente, é amar. O Senhor Jesus parte deste princípio válido em todos os tempos. Há a tentação de esquecer esta relação e permanecer satisfeitos com formas exteriores de piedade. Deus espera daqueles que ama uma aproximação viva, intensa e duradoura; pessoas que não se dividem, corações íntegros.

Sabemos que uma parábola como a do samaritano de hoje é uma pequena história para fazer compreender coisas importantes a quem escuta.

Quem é o nosso próximo?

O nosso próximo é aquele que tem necessidade da nossa ajuda e do nosso amor. A nossa parábola evidencia que se pode dizer que se ama a Deus e passar ao lado do próximo. Nem a lei, nem a liturgia, nem os sacrifícios  bastam para salvar o seu humano. A igreja é o albergue, o lugar da misericórdia. Como sublinha o papa Francisco: “não é automático que quem frequenta a casa de Deus e conhece a sua misericórdia saiba amar o próximo. Não é automático! Tu podes conhecer toda a bíblia, tu podes conhecer todas as rubricas litúrgicas, tu podes conhecer toda a Teologia, mas do conhecer não é automático o amar: amar tem uma estrada, ocorre inteligência, mas também algo mais… O sacerdote e o levita veem mais ignoram; olham mas não proveem. Contudo, não existe verdadeiro culto se ele não se traduz em serviço ao próximo. Nunca esqueçamos: perante o sofrimento de tanta gente esgotada pela fome, pela violência e pelas injustiças, não podemos permanecer espectadores. Ignorar o sofrimento do ser humano, o que significa? Significa ignorar a Deus! Se eu não me aproximo daquele homem, daquela mulher, daquela criança, daquele velhinho ou velhinha que sofrem, não me aproximo de Deus” (Audiência,  27-04-2016).

O cume da parábola verifica-se no momento em que o samaritano “teve compaixão”. Movido pelo amor e pela piedade, por uma misericórdia visceral, movido desde o íntimo, faz todo o possível por cuidar do homem abandonado na estrada. Eis uma graça fantástica! O estrangeiro previne também com o que acontecerá depois da sua partida. Mantém a proximidade mesmo na ausência física. Cria-se uma relação entre samaritano e ferido. Não deixa nada ao acaso. Regressará para recompensar a fidelidade do hospedeiro. Com esta garantia acaba a história, a parábola de Jesus. A verdadeira misericórdia não é sentimento mas uma ação completa que leva a tomar cuidado do outro, mesmo se culturalmente longínquo. Uma série de verbos o evidencia: “aproximou-se, ligou-lhe as feridas, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirou duas moedas e deu-as ao estalajadeiro e disse: “trata bem dele e o que gastares a mais eu te pagarei quando voltar“. A compaixão visceral, profunda, leva a tomar um cuidado integral, real e concreto de quem tem necessidade. Não se trata de uma boa ação isolada, mas de atitude social e politica permanente.

O bom samaritano joga o papel essencial de quem se empenha política e socialmente. Um cidadão que desdenhe da proximidade não é digno deste nome. A compaixão de coração do verdadeiro cidadão deve tornar-se também compaixão da mente. É necessário que ame prevendo as necessidades do futuro, entrevendo as urgências de amanhã, encontrando um sistema para prevenir os danos. Todas as pessoas empenhadas na política e nas questões sociais devem estar munidas de uma grande capacidade de discernimento e de conversão: discernimento dos sinais dos tempos, intuição das grandes utopias que irrompem no hoje e se tornam já carne e sangue, perceção da paz e fruto da justiça. Tomar cuidado do mal do mundo até ao fim da história é tarefa cristã. Ter misericórdia, numa Europa em crise profunda, é compreender  a amplitude dos problemas com as suas consequências económicas, sindicais, empresariais e associativas. É mover energia para um novo modelo de desenvolvimento que permite a cada ser humano ser amado. O modelo de desenvolvimento que domina o mundo complexo e global obriga-nos a definir estratégias de intervenção eficaz, criadoras de proximidade. A exclusão é monstruosa. Nada vale a retórica. Nada vale o populismo demagógico. Valem intervenções que o Espírito Santo inspira, capazes de articular a economia, a política, as culturas, a ciência, a pedagogia social para inventarem a proximidade.  O Espírito Santo move-nos, inclina-nos para cuidar com ternura dos males da nossa sociedade. O Espírito Santo aproxima-nos sem medo da pobreza, do sofrimento. Esse é o único modo para dizer hoje que Deus ama a humanidade. Caros irmãos e irmãs: isto acontece hoje entre vós, nesta festa do Espirito Santo. Demos graças, façamos eucaristia por tanta proximidade.

 

+ Carlos Moreira Azevedo

Conselho Pontificio da Cultura